Um excelente (e actual) artigo de Fernando Pessoa
A INUTILIDADE DOS CONSELHOS FISCAIS E DOS COMISSÁRIOS DO GOVERNO NOS BANCOS E NAS SOCIEDADES ANÓNIMAS
Escândalos ainda recentes, que se tornaram conhecidos do público através dos relatórios publicados no Diário do Governo, vieram pôr mais uma vez em evidência a inutilidade prática dos Conselhos Fiscais e dos Comissários do Governo — inutilidade reconhecida no estrangeiro pela substituição a essas entidades, realmente fictícias, de outras mais susceptíveis de se desempenhar do mister que a nossa legislação impõe àquelas. Os Conselhos Fiscais e os Comissários do Governo — aqueles mais do que estes — são pontos de apoio da confiança do accionista, que julga que neles encontra o controle da aplicação e a salvaguarda dos capitais que confiou ao Banco ou à Sociedade Anónima adentro, ou junto, da qual eles funcionam.
Reconhecendo as Sociedades Anónimas que a melhor forma de chamar o capital é a distribuição ruidosa de grandes dividendos, procuram frequentemente, por meio de lançamentos artificiais, encobrir um estado verdadeiro de pouco desafogo; publicam, para dar uma aparência de prosperidade, relatórios de prosa literária no fim dos quais os accionistas são definitivamente ludibriados pela confiança que lhe traz o inevitável “parecer” do Conselho Fiscal, com o costumado voto de louvor à Direcção, e a indicação aos accionistas que aprovem o Relatório de contas e a distribuição de dividendos que ele consigna.
Os accionistas aprovam tudo — uma vezes porque o dividendo é magnífico, outras porque simplesmente confiam na indicação que lhes é dada. E a Direcção e o Conselho Fiscal recebem os respectivos louvores. São homens hábeis, uns; são homens sérios, outros. Tudo está, pois, necessariamente certo.
Acontece, porém, que muitas vezes está errado. E é isso que os relatórios recentemente publicados põem em evidência.
Quando se cai na suspensão de pagamentos, os accionistas acordam. Mas, como esperavam que o Conselho Fiscal os acordasse, e o Conselho Fiscal dorme por natureza, acordam sempre tarde e perdem... não o comboio, mas o dinheiro. Há Sociedades Anónimas em que não acontece isto. Mas há porventura alguma Sociedade Anónima em que, tanto quanto o sabe o accionista, não possa acontecer isto? Que elementos tem o accionista para poder saber ao certo que isso lhe não pode acontecer? A prosperidade do Banco ou da Companhia? Mas a prosperidade é a que lhe é dada pelos dividendos, e que sabe ele se esses dividendos não são o seu próprio capital e o dos credores da Sociedade Anónima, em vez do lucro autêntico da prosperidade verdadeira de uma sociedade progressiva? Sabe o accionista ao certo se não é assim? Não sabe, porque aqueles elementos em quem delega a fiscalização, 1.º não fiscalizam, 2.º mesmo que fiscalizem, não sabem fiscalizar. Quantos são os membros dos Conselhos Fiscais que examinam a valer as contas da Sociedade Anónima? Quantos são os membros dos Conselhos Fiscais que têm as habilitações precisas, de contabilistas, para esse exame? Salvo casos excepcionais, os membros dos Conselhos Fiscais são escolhidos por serem homens sérios e de boa posição social. Não consta, porém, que a seriedade seja a contabilidade, nem que a boa posição social seja um curso intuitivo de guarda-livros.
Escolhem-se homens sérios para os Conselhos Fiscais. Mas os homens sérios podem ser estúpidos — há muitos —; os homens sérios podem ser confiados — há muitíssimos —; os homens sérios podem ser desleixados — há imensos —; e o accionista perde o seu dinheiro, sem que os homens muito sérios deixem de ser muito sérios, o que é uma consolação insuficiente para quem perdeu o dinheiro que fiou da fiscalização incompetente, se não inexistente, dos homens de muita seriedade.
Tudo isto, no fundo, é uma comédia sem graça. A Direcção de uma Sociedade Anónima é, por natureza, um conselho técnico de gerência; o Conselho Fiscal de uma Sociedade Anónima é, e por natureza, um conselho técnico de fiscalização. A Direcção produz resultados; o Conselho Fiscal verifica esses resultados. E como os resultados se traduzem por números, isto é, por contas, parece que o Conselho Fiscal deve ser constituído por gente especializada no exame e conferência de contas. E parece também que o Conselho Fiscal deve ser constituído por gente suficientemente independente da Gerência para poder fiscalizar essas contas com independência. O que se faz entre nós? Elege-se um Conselho Fiscal de pessoas de probidade e incompetência e, é claro, de pessoas em magníficas relações de amizade com a Gerência, e portanto com toda a confiança nela. Em resumo: o melhor fiscal dos actos de alguém é um amigo incompetente. É ou não uma comédia?
Dos Comissários do Governo nem é bom falar. Dos membros do Conselho Fiscal ainda se pode presumir, visto que são accionistas, um certo interesse pela Sociedade Anónima a que pertencem, se bem que o interesse não crie competência, nem pese mais, na maioria dos casos, que o desleixo natural de quem é incompetente e confiado. Mas dos Comissários do Governo nem essa presumível interesse se pode presumir. São funcionários do Estado, que é, como toda a gente sabe, o mais mal servido de todos os patrões. São nomeados por obscuros lances do xadrez partidário, em prémio de serviços políticos e para que veraneiem todo o ano no seu comissariado; são nomeados para não fazer nada, e é efectivamente o que fazem. Deles, pois, é o Reino dos Céus... Deixemo-los e volvamos à terra.
Independência e competência são duas qualidades que se exigem em quem fiscaliza. O ter interesse em fiscalizar é secundário: o doente não percebe mais da doença que o médico, embora seja quem tem mais interesse na cura. Ora, se dependência e competência são as qualidades a exigir ao fiscal, está naturalmente indicado que a fiscalização das Sociedades Anónimas sejam examinadas, e por fim aprovadas, por peritos contabilistas estranhos às Sociedades, e com responsabilidade penal directa. Esses peritos (auditors) têm poderes para examinar toda a escrita, para verificar todas as transacções, para fazer à Direcção todas as perguntas que entenderem dever fazer para cabal desempenho do seu mister.
E assim é que deve ser. De todas as formas das sociedades comerciais as Sociedades Anónimas são as que mais se prestam ao abuso e ao desleixo da Gerência, pois que nelas há uma intervenção já teoricamente periódica, mas, em geral, praticamente nula dos sócios (isto é, dos accionistas) na gerência. Há mister, pois, que deleguem em alguém a fiscalização que nem podem, nem em geral sabem, exercer. Delegá-la em Conselhos Fiscais equivale a delegá-la em ninguém, ou a delegá-la na própria gerência a fiscalizar. Não, não há outra solução senão os auditors, os peritos contabilistas — competentes porque são técnicos, independentes porque não pertencem à Sociedade, e responsáveis criminalmente por abuso, ou mesmo desleixo, no exercício do seu cargo.
25-1-1926
Páginas de Pensamento Político. Vol II. Fernando Pessoa. (Introdução, organização e notas de António Quadros.) Mem Martins: Europa-América, 1986. p. 127.
Artigo escrito em colaboração com Francisco Caetano Dias.1ª Publ. in
Revista de Comércio e Contabilidade, nº 4. Lisboa: 25-1-1926
Escândalos ainda recentes, que se tornaram conhecidos do público através dos relatórios publicados no Diário do Governo, vieram pôr mais uma vez em evidência a inutilidade prática dos Conselhos Fiscais e dos Comissários do Governo — inutilidade reconhecida no estrangeiro pela substituição a essas entidades, realmente fictícias, de outras mais susceptíveis de se desempenhar do mister que a nossa legislação impõe àquelas. Os Conselhos Fiscais e os Comissários do Governo — aqueles mais do que estes — são pontos de apoio da confiança do accionista, que julga que neles encontra o controle da aplicação e a salvaguarda dos capitais que confiou ao Banco ou à Sociedade Anónima adentro, ou junto, da qual eles funcionam.
Reconhecendo as Sociedades Anónimas que a melhor forma de chamar o capital é a distribuição ruidosa de grandes dividendos, procuram frequentemente, por meio de lançamentos artificiais, encobrir um estado verdadeiro de pouco desafogo; publicam, para dar uma aparência de prosperidade, relatórios de prosa literária no fim dos quais os accionistas são definitivamente ludibriados pela confiança que lhe traz o inevitável “parecer” do Conselho Fiscal, com o costumado voto de louvor à Direcção, e a indicação aos accionistas que aprovem o Relatório de contas e a distribuição de dividendos que ele consigna.
Os accionistas aprovam tudo — uma vezes porque o dividendo é magnífico, outras porque simplesmente confiam na indicação que lhes é dada. E a Direcção e o Conselho Fiscal recebem os respectivos louvores. São homens hábeis, uns; são homens sérios, outros. Tudo está, pois, necessariamente certo.
Acontece, porém, que muitas vezes está errado. E é isso que os relatórios recentemente publicados põem em evidência.
Quando se cai na suspensão de pagamentos, os accionistas acordam. Mas, como esperavam que o Conselho Fiscal os acordasse, e o Conselho Fiscal dorme por natureza, acordam sempre tarde e perdem... não o comboio, mas o dinheiro. Há Sociedades Anónimas em que não acontece isto. Mas há porventura alguma Sociedade Anónima em que, tanto quanto o sabe o accionista, não possa acontecer isto? Que elementos tem o accionista para poder saber ao certo que isso lhe não pode acontecer? A prosperidade do Banco ou da Companhia? Mas a prosperidade é a que lhe é dada pelos dividendos, e que sabe ele se esses dividendos não são o seu próprio capital e o dos credores da Sociedade Anónima, em vez do lucro autêntico da prosperidade verdadeira de uma sociedade progressiva? Sabe o accionista ao certo se não é assim? Não sabe, porque aqueles elementos em quem delega a fiscalização, 1.º não fiscalizam, 2.º mesmo que fiscalizem, não sabem fiscalizar. Quantos são os membros dos Conselhos Fiscais que examinam a valer as contas da Sociedade Anónima? Quantos são os membros dos Conselhos Fiscais que têm as habilitações precisas, de contabilistas, para esse exame? Salvo casos excepcionais, os membros dos Conselhos Fiscais são escolhidos por serem homens sérios e de boa posição social. Não consta, porém, que a seriedade seja a contabilidade, nem que a boa posição social seja um curso intuitivo de guarda-livros.
Escolhem-se homens sérios para os Conselhos Fiscais. Mas os homens sérios podem ser estúpidos — há muitos —; os homens sérios podem ser confiados — há muitíssimos —; os homens sérios podem ser desleixados — há imensos —; e o accionista perde o seu dinheiro, sem que os homens muito sérios deixem de ser muito sérios, o que é uma consolação insuficiente para quem perdeu o dinheiro que fiou da fiscalização incompetente, se não inexistente, dos homens de muita seriedade.
Tudo isto, no fundo, é uma comédia sem graça. A Direcção de uma Sociedade Anónima é, por natureza, um conselho técnico de gerência; o Conselho Fiscal de uma Sociedade Anónima é, e por natureza, um conselho técnico de fiscalização. A Direcção produz resultados; o Conselho Fiscal verifica esses resultados. E como os resultados se traduzem por números, isto é, por contas, parece que o Conselho Fiscal deve ser constituído por gente especializada no exame e conferência de contas. E parece também que o Conselho Fiscal deve ser constituído por gente suficientemente independente da Gerência para poder fiscalizar essas contas com independência. O que se faz entre nós? Elege-se um Conselho Fiscal de pessoas de probidade e incompetência e, é claro, de pessoas em magníficas relações de amizade com a Gerência, e portanto com toda a confiança nela. Em resumo: o melhor fiscal dos actos de alguém é um amigo incompetente. É ou não uma comédia?
Dos Comissários do Governo nem é bom falar. Dos membros do Conselho Fiscal ainda se pode presumir, visto que são accionistas, um certo interesse pela Sociedade Anónima a que pertencem, se bem que o interesse não crie competência, nem pese mais, na maioria dos casos, que o desleixo natural de quem é incompetente e confiado. Mas dos Comissários do Governo nem essa presumível interesse se pode presumir. São funcionários do Estado, que é, como toda a gente sabe, o mais mal servido de todos os patrões. São nomeados por obscuros lances do xadrez partidário, em prémio de serviços políticos e para que veraneiem todo o ano no seu comissariado; são nomeados para não fazer nada, e é efectivamente o que fazem. Deles, pois, é o Reino dos Céus... Deixemo-los e volvamos à terra.
Independência e competência são duas qualidades que se exigem em quem fiscaliza. O ter interesse em fiscalizar é secundário: o doente não percebe mais da doença que o médico, embora seja quem tem mais interesse na cura. Ora, se dependência e competência são as qualidades a exigir ao fiscal, está naturalmente indicado que a fiscalização das Sociedades Anónimas sejam examinadas, e por fim aprovadas, por peritos contabilistas estranhos às Sociedades, e com responsabilidade penal directa. Esses peritos (auditors) têm poderes para examinar toda a escrita, para verificar todas as transacções, para fazer à Direcção todas as perguntas que entenderem dever fazer para cabal desempenho do seu mister.
E assim é que deve ser. De todas as formas das sociedades comerciais as Sociedades Anónimas são as que mais se prestam ao abuso e ao desleixo da Gerência, pois que nelas há uma intervenção já teoricamente periódica, mas, em geral, praticamente nula dos sócios (isto é, dos accionistas) na gerência. Há mister, pois, que deleguem em alguém a fiscalização que nem podem, nem em geral sabem, exercer. Delegá-la em Conselhos Fiscais equivale a delegá-la em ninguém, ou a delegá-la na própria gerência a fiscalizar. Não, não há outra solução senão os auditors, os peritos contabilistas — competentes porque são técnicos, independentes porque não pertencem à Sociedade, e responsáveis criminalmente por abuso, ou mesmo desleixo, no exercício do seu cargo.
25-1-1926
Páginas de Pensamento Político. Vol II. Fernando Pessoa. (Introdução, organização e notas de António Quadros.) Mem Martins: Europa-América, 1986. p. 127.
Artigo escrito em colaboração com Francisco Caetano Dias.1ª Publ. in
Revista de Comércio e Contabilidade, nº 4. Lisboa: 25-1-1926
0 Comentários:
Enviar um comentário
<< Home