«Está cá um bafo!»
Porque é que o calor dos tempos da nossa infância e juventude era diferente do da idade adulta? Porque a memória assim o faz, mas também porque era realmente diferente, por causa dos sítios onde o sentimos e a que nunca mais voltámos, e daqueles que o sentiram connosco e depois foram desaparecendo. Recordo-me do Verão quente durante o «Verão quente» de 1975, na casa da família, no Ribatejo. A minha avó de bata leve como ela gostava, atarefada na cozinha e a beber «mazagran», ajudada pela minha mãe e pela formidável criada Beatriz, a minha irmã, ainda miúda, a brincar no terraço com um ringue de borracha, a cadela a deitar os bofes pela boca e a deitar-se à sombra da cadeira de campismo onde eu lia ficção científica, os gatos a restolhar lá em baixo no jardim, o primo Arlindo, que jantava «sempre pela fresca», a chamar os pombos para os alimentar, sob a latada de uva moranga, e as aves quase que paralisadas no voo pela caloraça, o primo Jacinto a vir da estação só para anunciar que lá ainda estava «mais quente do que aqui» e para dizer mal dos comunistas que queriam «dar cabo disto tudo», o ar pesado, a tremer, quase que se podia tocar, a prima Laureana, toda de preto, a lamentar a canícula, a prima Maria a dizer que se continuasse assim o Tejo ficava «quase só poças» e que a «Estrudes» tinha desmaiado no Largo da Bomba por causa do sol, «vejam lá, coitadinha», a Dona Gina, encaloradíssima, a ligar à minha mãe para se queixar, «Ó filha, nem no sofá da sala consigo estar, vê lá!». E o meu pai, acabado de sair do duche, à espera do Telejornal na RTP a preto e branco para dizer cobras e lagartos do Vasco «Louco» e do Cunhal, vestido com uma camisa de manga curta que ainda guardo numa gaveta, a sentar-se noutra cadeira ao pé de mim, uma Sagres gelada numa mão e um livro sobre betão armado na outra, e a dizer: «Está cá um bafo!». Saudades das férias de três meses e da casa grande e fresca, saudades desse Verão duplamente quente, saudades desse calor que quase secava o Tejo, fazia os pombos como que parar no ar e as velhotas desmaiar na rua, saudades dos meus mortos.
11 Comentários:
«Formidável criada Beatriz»? Hummm... ;-)
Mais a sério: uma bela evocação.
Ao Vasco "Louco", e nessa mesmíssima época, o meu pai limitava-se a chamar-lhe "O Burro"...
Meu caro Eurico!!
Q saudade.. sua, e das criadas!!
A minha Avó também tinha sempre 3.. mas eram matrafonas.. :( talvez por isso os meu verões não fossem tão quentes :(
MZ
Nada de maus pensamentos: a senhora era daquelas criadas «de família», mulher honestíssima, mãe de filhos. Começou miúda em casa da minha avó, morreu pouco depois da minha avó. Foram 50 anos com a minha família, pertencia-lhe. Tratou da minha mãe e das minhas tias, de mim e da minha irmã, e dos meus dois primos. Já não há criadas assim. E detestava que lhe chamassem «empregada», porque tinha sido «criada» lá em casa, com muito orgulho. Gente boa, meus senhores.
Gente boa.. ou boa gente? É q é diferente Eurico ;)
Belíssimo texto onde as palavras somam saudades indizíveis... Deu para partilhar o calor e a ternura das evocações.. Abençoada memória aquela que honra os seus.
Flower
Boa gente portuguesa. Ainda existe muita, acredite, caro anónimo.
eheh sorry pelo meu ultimo anonimo não assinei Mz como é habitual!
Pois.. eu calgulei que fosse gente boa.. mas como estava escrito boa gente preferi confirmar :)
Mais a sério.. excelente relato veraneante..
MZ
Um bom texto de Eurico. Parabéns.
E por acos outros intervenientes sabem o que quer dizer criada? Procurem no dicionário, caso saibam fazer.
Criada é uma rapariga que vai desde pequena para casa de pessoas e é criada por eles. Que pouca cultura e não sabem nada de História. Estudem e não deitem palavras ao vento e com complexos de esquerda e infantis.
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